Igor Pantusa Wildmann
Advogado. Mestre e Doutor em Direito Econômico. Professor da Faculdade Metodista Izabela Hendrix, da Faculdade de Direito Milton Campos e da Pós Graduação da Fundação Escola Superior do Ministério Público de Minas Gerais. Conselheiro Técnico em Crédito Rural da FAEMG – Federação da Agricultura do Estado de Minas Gerais. Consultor Jurídico da ABBA – Associação Brasileira da Batata
Acompanhando as negociações e votações das medidas pertinentes ao Crédito Rural, cristalizadas na MP 2196-3 (que cria a Empresa Gestora de Ativos – EMGEA) e na MP 9 (que reduz encargos e alonga o perfil das dívidas incluídas nos benefícios da lei 9138 /95 – securitização e PESA) deparamos –nos com dezenas de comentários de técnicos do governo e representantes das instituições financeiras – feitos publica e abertamente à imprensa – no sentido de que tais medidas seriam “definitivas” e que “agora seria o momento de acabar com a cultura de inadimplência do setor rural no país”.
Sob tal ponto de vista, amplamente difundido pelos meios de comunicação, tem-se uma impressão crucial: o ruralista é fundamentalmente “caloteiro”e não paga suas dívidas por que não quer. Seria isso uma verdade?
Vemos tais comentários como, senão cínicos, no mínimo desinformados. A questão do Crédito Rural no Brasil não depende tão somente da vontade do devedor em cumprir suas obrigações. Qualquer técnico ligado à área econômica governamental sabe – ou deveria saber – que existência e sobrevivência de qualquer setor produtivo depende da manutenção de um ambiente econômico que garanta um mínimo de viabilidade.
Com o setor rural não é diferente: é sabido que os países mais ricos – os que mais pregam a não intervenção estatal na economia – são os que mais investem em políticas de proteção e subvenção do setor rural. Os exemplos da Política Agrícola Comum (PAC) da União Européia ou do Sistema de Crédito Rural (Farm Credit Sistem) nos Estados Unidos, ou mesmo do tradicional e forte Crédit Agricóle de France mostram a realidade.
No caso brasileiro, temos o nosso Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR), no qual há uma interação entre a esfera pública, que direciona, determina, institui fontes de recursos e fiscaliza, e a privada, que é a esfera de contratação do empréstimo pelo produtor junto ao banco.
O fato é que o Crédito Rural possui normas próprias, diferenciadas dos contratos bancários comuns, e que tais normas não tem há muito sido seguidas nas contratações dos financiamentos, bem como nos cálculos de evolução da dívida.
Tal fato pode ser comprovado em documentos oficiais, seja no relatório da CPI do Crédito Rural, seja na vasta jurisprudência que hoje se acumula nos tribunais, limitando e anulando cláusulas feitas em desconformidade com as normas legais e infra legais pertinentes ao SNCR.
Ou seja: existe uma inadimplência por que boa parte dos débitos rurais, se forem calculados pelos critérios da lei 4829, do decreto lei 167 ou da lei 9138, não atingem os valores apresentados pelas instituições financeiras.
Justamente em função do descompasso entre a lei e a prática houve um verdadeiro inchamento dos débitos rurais, criando-se ativos bancários que, na verdade, não existem do ponto de vista legal.
A securitização e o PESA vieram justamente para tentar sanar tal situação. Tais benefícios, lastreado em recursos e/ou títulos do tesouro, criaram uma moratória legal forçada às dívidas rurais. Mas a securitização e PESA não compreendem somente uma concessão de prazo. Tal concessão deve ser precedida da suspensão das execuções e / ou cobranças, bem como do recálculo da divida, que é legalmente previsto, justamente para se fazer o montante do débito voltar aos parâmetros legais.
As instituições financeiras acabam sendo premiadas por suas ilegalidades, pois o governo, subvenciona além da diferença do prazo, o diferencial gerado pelo recálculo.
Por incrível que pareça, tem sido extremamente freqüentes os casos em que a instituição financeira concede o prazo da securitização ou PESA, mas sem o recálculo legalmente previsto. Neste caso, o banco ganha três vezes: uma por evoluir a dívida por critérios que certamente não passariam pelo crivo judicial; duas por receber do governo a equalização do benefício e a terceira por manter a cobrança de valores que deveriam, por determinação da lei 9138/95, ser extirpados do débito (eis que “já pagos” pelo governo).
Em suma: os bancos incham a dívida até a mesma se tornar impagável. Posteriormente, securitizam-na ou incluem-na no PESA, recebendo recursos ou títulos do governo que correspondem à mesma devidamente “desinchada”. Na prática, mesmo tendo recebidos tais valores, mantêm o referido “inchaço” em uma dívida que, normalmente, continua, por razões óbvias, incompatível com a lucratividade e com a capacidade de pagamento do produtor. Depois, tem-se a coragem de se falar que a inadimplência é um problema cultural do setor…
Dessa forma, tiramos as seguintes conclusões:
1) Os grandes beneficiados com a securitização e o PESA são os bancos, que trocaram ativos “em ser” que, além de difícil recebimento eram de legalidade questionável, por recursos do tesouro ou títulos públicos negociáveis.;
2) Os produtores não têm, na prática sido beneficiado na extensão em que a lei ordena. A mera concessão de prazo sem o devido e legal recálculo poderá ter efeitos desastrosos, sobretudo se considerarmos a capitalização anual de juros em períodos de 20 a 25 anos;
3) O problema do débito rural consolidado no país não é oriundo de uma cultura de inadimplência dos produtores, mas pela cultura de reiterado desrespeito à lei, cultivada pelo setor financeiro, sobretudo a partir do início da década de 90.
Pergunta-se muito se as novas medidas trarão uma solução definitiva ao problema. A resposta a tal pergunta é simples: as leis existem. Para o resultado esperado, basta cumpri-las.
*Artigo originalmente publicado na Revista Batata Show, Ano 2 – N.º 5 – Setembro 2002. Disponível também no site www.abba.com.br