Igor Pantusa Wildmann
Advogado. Mestre e Doutor em Direito Econômico. Professor da Faculdade Metodista Izabela Hendrix, da Faculdade de Direito Milton Campos e da Pós Graduação da Fundação Escola Superior do Ministério Público de Minas Gerais. Conselheiro Técnico em Crédito Rural da FAEMG – Federação da Agricultura do Estado de Minas Gerais. Consultor Jurídico da ABBA – Associação Brasileira da Batata.
O novo século, exatamente como o anterior, inicia-se com uma seqüência de desilusões sobre mitos caríssimos ao ideário econômico liberal.
As desigualdades sociais geradas pela prática absenteísta do Estado na Economia, levam os países centrais – dotados normalmente de um eleitorado ativo e acostumado ao bem-estar social – a criar fortes grupos de pressão sobre seus respectivos governos, forçando-os a um protecionismo unilateral nos setores nos quais tais nações são vulneráveis. As recentes posturas dos Estados Unidos sobre o aço e a agricultura são um forte exemplo disso. Não se pode esquecer ainda que, tradicionalmente dominados pelos interesses dos países centrais, os acordos do GATT – que hoje regem a OMC – excluem solenemente o setor rural de suas restrições ao protecionismo (barreiras e subsídios).
A despeito do Agriculture Agreement, feito sob os auspícios da OMC sob a pressão de países de agropecuária competitiva (Brasil, Chile, Austrália e Turquia, dentre outros), nada indica no cenário internacional que União Européia e Estados Unidos venham a modificar suas políticas agrícolas, tradicionalmente protecionistas e fortemente tutelares. Tal sentimento torna-se mais presente após os parcos avanços da Conferência Ministerial de Cancun.
Fato é que as políticas econômicas de tais países, a despeito de seu discurso fortemente pautado pelo liberalismo, têm a agricultura como uma atividade virtualmente dependente de crédito barato, bem como de políticas de fixação de preços mínimos para a comercialização; seja em virtude dos alongados ciclos produtivos da atividade, seja devido à influência aleatória e crucial dos fatores climáticos, seja devido às fortes e imprevisíveis oscilações de preços dos produtos, seja devido ao alto potencial de geração de empregos da atividade.
É unânime, portanto, a constatação de que a agricultura é uma atividade peculiar, que demanda uma política própria, como, aliás, ordenado no Brasil pela Constituição de 1988, em seu art. 187. No caso brasileiro, o setor rural é responsável por boa parte das exportações, as quais têm o mérito de trazerem divisas mais seguras e estáveis, por serem oriundas de superávits comerciais.
A crescente vulnerabilidade das contas externas brasileiras – fruto da política de “desindustrialização endividada” – acompanhada do receio de retração dos investimentos internacionais de curto prazo, tem levado o governo a repensar sua estratégia de captação de divisas, voltando-se novamente para o setor produtivo e exportador.
O cumprimento de tal meta de retomada de produção, no entanto, implica em possibilitar um ambiente favorável ao investimento produtivo. A criação de tal ambiente já fora há muito prevista pelo legislador pátrio.
No caso brasileiro, a política agrícola, cujos princípios estão consagrados no art. 187 da Constituição, passa fundamentalmente pelo setor creditício. Sendo a atividade, por um lado, absolutamente dependente de crédito e, por outro, dotada de padrões de rentabilidade e risco manifestamente incompatíveis com os chamados juros “de mercado”, o legislador criou, com o advento da lei 4829/64, o Sistema Nacional de Crédito Rural – SNCR, no qual há, para fins de viabilização de uma política econômica para o setor, uma interação entre a esfera pública e a privada, formando uma teia – um sistema – que visa o fomento creditício da atividade produtiva. Desta teia participam a esfera pública (Tesouro, Banco Central e Conselho Monetário Nacional) que disponibiliza os recursos[1] e regulamenta a aplicação dos mesmos, bem como a esfera privada (bancos públicos, privados e cooperativas de crédito) que operam como repassadores e/ou gestores dos recursos destinados aos empréstimos rurais.
Dessa forma, em se tratando de recursos de natureza pública – institucional[2], destinados ao fomento da atividade, não há que se falar em aplicação pura e simples dos princípios de direito privado, como o pacta sunt servada.
No caso em tela, o pacto entre as partes deve refletir exatamente não só os princípios gerais constantes na legislação específica (Dec. Lei 167/65 e lei 4829/64), mas também as condições específicas referentes a prazos, juros, termos e garantias, dentre outros.
Os termos, prazos, juros, garantias e demais condições aplicáveis a todos os empréstimos de natureza rural, em qualquer de suas modalidades, deverá seguir as determinações do Conselho Monetário Nacional, consoante a leitura do art. 14 da lei 4829/64.
Vale ressaltar que os recursos são de natureza público- institucional. Assim sendo, a autoridade monetária disponibiliza o recurso a ser destinado às carteiras de Crédito Rural dos agentes repassadores. Por outro lado, estes devem cumprir estritamente as condições referentes ao repasse dos recursos para o produtor. Tais condições são claras e específicas, vindo expressas ano a ano, safra a safra, nas diversas resoluções do CMN que regulamentam cada linha de crédito rural, as quais são distintas entre si, de acordo com a origem dos recursos, a sua destinação e o ano (safra) de liberação (empréstimo).
Pela leitura do art. 14 da lei 4829/64, temos que um empréstimo lastreado em recursos do FUNCAFÉ – Fundo Nacional de Defesa da Economia Cafeeira – para custeio da safra 2000/2001 apresenta condições de aplicação totalmente distintas de um empréstimo destinado a um custeio[3] de soja da 2002/2003, de um crédito à agricultura familiar (PRONAF), e assim por diante. Tais diferenças vêm da vontade de política econômica do administrador público, manifestadas nos normativos do Conselho Monetário Nacional.
É justamente em função desta mecânica funcional que o Superior Tribunal de Justiça vem entendendo reiteradamente que, à falta de demonstração da regulamentação expressa do CMN para os débitos rurais postos à apreciação judicial, o julgador deverá considerar o teto de 12% ao ano na cobrança de juros.
Tal exegese adequa-se perfeitamente à dinâmica do Sistema Nacional de Crédito Rural – SNCR eis que, sendo as linhas de crédito rural normalmente beneficiadas com juros menores do que 12% anuais (8,75% ao ano para o custeio de safra, 5,75% ao ano para os créditos à Agricultura Familiar, etc), os bancos, ao promoverem execuções, deixavam de apresentar as resoluções regulamentadoras, do CMN, no intuito de induzir à matéria um trato de ordem estritamente privada, lastreado tão somente pelo princípio do pacta sunt servanda.
Todavia, a hermenêutica do STJ encontra natureza tão somente paliativa, específica para os casos em que as partes não apresentam nos autos as normas específicas que regulam a aplicação de recursos referentes à linha de crédito consolidada num contrato ou cédula levada à apreciação judicial.
Há de se averiguar, portanto, alguns fatores, todos obrigatoriamente constantes na cédula ou contrato de financiamento rural: o primeiro é a origem dos recursos (Recursos Obrigatórios? Vinculados? De fundos ou programas de fomento? De Caderneta de Poupança Rural? Livres?); o segundo, a destinação dos recursos[4] (Créditos ao custeio? Investimento? Comercialização? Industrialização? Financiamentos a determinados tipos de lavoura com tratamento especial?) e, por último, a data do empréstimo, que diferencia as condições de aplicação dos mesmos. Fato é que, seguindo o estrito comando do art. 14 da lei 4829/94 e do art. 5o do DL 167, o Conselho Monetário Nacional vem, ano a ano, safra a safra, regulamentando os empréstimos rurais, levando em consideração todos os fatores supra apontados.
Somente com atenção a tais fatores, devidamente diferenciados pela lei 4829/64 e pela regulamentação do Sistema Nacional de Crédito Rural poder-se-á concluir efetivamente quais as condições – previstas por normas de caráter público-econômico[5] – que devem efetivamente constar dos contratos e cédulas de crédito rural submetidos à apreciação judicial.
Por fim, em se tratando de crédito rural, temos que não há fórmulas prontas na definição da legalidade dos encargos cobrados, sendo certo que a análise da origem, destinação e data de liberação dos recursos emprestados serão fatores cruciais na determinação da legalidade dos pactos avençados entre banco repassador de recursos e mutuário produtor.
*Artigo publicado na Revista Brasileira de Direito do Agronegócio (Publicação oficial do instituto Internacional de Direito Admnistrativo Econômico – IDAE) – Ano 2, n.º 2, janeiro/junho 2009 – São Gotardo: MG, 2009.
[1] As fontes de recursos destinados a empréstimos rurais estão previstas no art. 15 da lei 4829 e regulamentadas pelo Manual de Crédito Rural do Banco Central do Brasil (MCR), espécie de consolidação das principais normas regulamentadoras do Conselho Monetário Nacional sobre a matéria.
[2] A conceituação ora adotada parte da observação que, no SNCR, há a alocação de recursos públicos strictu sensu (recursos do tesouro, recursos de fundos e programas de fomento, recursos de empréstimos internacionais, dentre outros), bem como dos recursos privados de aplicação compulsória na atividade, que correspondem a um percentual (definido em normas do CMN) sobre os depósitos à vista feito pelos correntistas em suas instituições financeiras, os quais devem, pro força de lei, serem aplicados em empréstimos rurais nas exatas condições definidas pelo CMN para aquele exercício financeiro.
[3] O Crédito ao custeio – destinado às despesas de um ciclo produtivo (safra) vêm, usualmente, dos chamados “recursos obrigatórios”, que constituem–se em alocações feitas sobre percentuais de depósitos sujeitos ao recolhimento compulsório, nos termos da lei 4595/64. Tais depósitos, apesar de privados, são recolhidos ao Banco Central – para fins de contenção de liquidez macroeconômica. Sobre este recolhimento, é definido um percentual que deve obrigatoriamente ser aplicado em empréstimos rurais, nas condições determinadas pelo CMN.
[4] A classificação e distinção dos empréstimos rurais segundo a sua finalidade estão previstas no art. 9º da lei 4829/65 e regulamentadas pelo MCR 3.2. do Bacen.
[5] O caráter público – econômico consta na própria origem dos recursos, que são públicos ou ainda privados de aplicação obrigatória no setor, como dito alhures.