Igor Pantusa Wildmann
Advogado. Mestre e Doutor em Direito Econômico. Professor da Faculdade Metodista Izabela Hendrix, da Faculdade de Direito Milton Campos e da Pós Graduação da Fundação Escola Superior do Ministério Público de Minas Gerais. Conselheiro Técnico em Crédito Rural da FAEMG – Federação da Agricultura do Estado de Minas Gerais. Consultor Jurídico da ABBA – Associação Brasileira da Batata.
Toda atividade econômica é fundamentada em um tripé: organização, capital e trabalho. A organização poderia ser definida como o a atitude de prever a gama de acontecimentos prováveis dentro da atividade, elaborando as metas a serem alcançadas e as saídas possíveis para os impasses a serem gerados; capital, como o conjunto de bens alocados para a atividade econômica, e trabalho, como o processo de condução da atividade econômica em direção à meta elaborada no momento organizacional.
Nas economias modernas, tem se tornado cada vez mais difícil que a união destes três elementos seja realizada por apenas um sujeito. Mesmo em se tratando das mais gigantescas empresas, é raro encontrar aquela que disponha, sempre, por conta própria, dos elementos necessários à atividade produtiva, sobretudo o mais decisivo dentre eles: o capital financeiro. Incontáveis são as vezes em que o empresário, não obstante ter considerável soma em bens do tipo ativo imobilizado, não consegue dar prosseguimento à sua atividade, única e exclusivamente por falta de liquidez, liquidez esta, muitas vezes insignificante, se considerado patrimônio agente econômico, ou suas possibilidades de lucro.
Tal tipo de situação demanda justamente a união de forças – a financeira e a produtiva, ambas interdependentes dentro de um sistema econômico equilibrado.
Em se tratando de setor rural, mais complexa e delicada torna-se a necessária simbiose entre o setor produtivo e o financeiro, tendo em vista tanto os riscos da atividade, facilmente influenciada por fatores exógenos, quanto as influências das intempéries absolutamente imprevisíveis, ou ainda as oscilações de preços decorrentes de variações de toda ordem nos mercados, interno e externo.
A imprevisibilidade de colheita, o longo ciclo produtivo e a ocorrência comum de preços incapazes de possibilitar o retorno do investimento, são fatores que mantém, nas nações modernas, um sistema de subvencionamento específico à atividade primária, não obstante toda a tendência político-ideológica em buscar eliminar os subsídios às atividades dos setores industrial e de serviços.
Assim, mesmo com a evolução dos objetivos consagrados no acordo GATT[1], a atividade primária, sobretudo agrícola, continua a ser largamente subvencionada pelos governos: o farm credit sistem norte americano e a Política Agrícola Comum são alguns exemplos de tais práticas.
A legislação brasileira prevê, como principal forma de compensar os problemas estruturais da atividade, uma política creditícia diferenciada ao setor, com linhas de crédito lastreadas em recursos oriundos de alocações institucionais [2] ou mesmo de recursos do tesouro.
O art 2º da 4829/67 define Crédito Rural como (…) o suprimento de recursos financeiros por entidades públicas e estabelecimento de créditos particulares a produtores rurais o à suas cooperativas, para a aplicação exclusiva em atividades que se enquadrem nos objetivos da legislação em vigor.”.
Delineia-se, desde sua criação, uma vinculação estreita entre o crédito rural e os objetivos, não das partes contratantes (banco e produtor), mas da ordem pública, representadas pelo legislador.
Os recursos financeiros referidos na norma são repassados ao produtor tanto por instituições públicas como privadas, posto que ambas podem operar com recursos destinados à aplicação no setor rural. Pode-se falar portanto, na existência de um caráter sistêmico[3] dos empréstimos para o setor rural, sendo que os mesmos, por lastrearem-se em recursos institucionais, e por terem sua aplicação limitada e fiscalizada
A aplicação dos recursos emprestados, por sua vez não é livre, havendo previsões e diferenciações legais para os créditos ao investimento, custeio e à comercialização. Não bastasse, os créditos não podem ser utilizados para outra atividade senão aquela pactuada, sob pena de desclassificação do mesmo para as condições normais (muito mais onerosas ao tomador), sem embargo das medidas criminais cabíveis. O legislador, para fazer valer tais princípios assegura a fiscalização da aplicação dos créditos rurais pela instituição financeira.
Os termos, prazos, juros e demais condições dos contratos serão fixados periodicamente pelo Conselho Monetário Nacional, conforme expressa determinação do art 14 da lei 4829/64.
De todas as considerações acima, concluímos que os empréstimos firmados com base no Sistema Nacional de Crédito Rural não têm caráter exclusivamente privado, não estando tão somente sujeitos à convenção entre as partes. Tais relações jurídicas permeiam as esferas do público e do privado, tendo, como bem ressaltado em sua definição, uma natureza sistêmica, que conjuga simultânea e indissociavelmente, princípios de direito privado e de ordem pública, posto que, embora se trate a princípio de relação privada entre a instituição prestamista e o produtor, a mesma deriva, em última instância, de um sistema de subvenção à atividade primária.
Portanto, assim como à instituição financeira é vedado praticar condições diversas das estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional, bem como seguir as exigências legais para operar com recursos do SNCR, também o produtor deverá demonstrar idoneidade para fazer jus ao empréstimo diferenciado.
OS REQUISITOS PARA A CONCESSÃO DO CRÉDITO RURAL
Sendo um financiamento especial, o Crédito Rural não pode ser concedido para qualquer finalidade, como supra descrito, tampouco a qualquer proponente.
O art.13 do dec 58 380/66, que regulamenta a lei 4829/64, assim dispõe:
“Art. 13 – As operações de Crédito Rural subordinam-se às seguintes exigências:
I – Idoneidade do proponente;
II – Apresentação de orçamento de aplicação nas atividades específicas;
III – Fiscalização pelo financiador.”
O requisito que ora trataremos é o da idoneidade do proponente. Vale indagar: o que vem a ser idoneidade? Se tratássemos a questão sob a ótica puramente privatista, vigorante nos contratos bancários comuns, poderíamos entender idoneidade como a capacidade de organização, o capital, o bom nome do mutuário na praça, enfim, as características pessoais ou empresarias do mutuário que sinalizassem ao prestamista tão somente a perspectiva de retorno do principal emprestado, com os juros e demais encargos pactuados.
Em se tratando entretanto de um sistema de caráter público-privado, destinado precipuamente a objetivos de ordem político-econômica, a definição de idoneidade do proponente deve ser ampliada, de modo a transcender o caráter meramente mercantil.
Por outro lado, fere ao bom direito que o Estado conceda qualquer auxílio àquele que venha a utilizar-se do mesmo, direta ou indiretamente, para fins ilícitos.
Dessa forma, estão impedidos de contrair empréstimos rurais, aqueles que já tiverem, comprovadamente, praticado desvio de crédito, aqueles que tiverem sido lançados em dívida ativa, sem a suspensão ou extinção do crédito tributário.
Mas outro fator de suma importância, sobretudo numa atividade de altíssimo impacto ambiental[4] como a agropecuária, é a adequação da atividade rural do proponente/ beneficiário, às exigências ambientais emanadas da lei e das autoridades competentes.
Numa época em que a preocupação com o meio ambiente toma a agenda mundial, tomando não só lugar na maioria das legislações modernas, como traduzindo-se em problema transfronteiriço[5], não se pode admitir que o infrator ambiental seja beneficiado com empréstimos do Sistema Nacional de Crédito Rural.
Neste sentido, a lei 6938/81, que dispõe sobre a política nacional do meio ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação dispõe:
“Art.14 – Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal, estadual e municipal, o não-cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade ambiental sujeitará os transgressores:
(…)
II – à perda ou restrição de incentivos e benefícios fiscais concedidos pelo Poder Público;
III – à perda ou suspensão de participação em linhas de financiamento em estabelecimentos oficiais de crédito;
IV – à suspensão de sua atividade.”
A interpretação literal do dispositivo, a princípio poderia levar a crer que o infrator pudesse ser afastado tão somente de linhas oficiais em estabelecimentos oficiais de crédito, excluindo-se de tal punição a possibilidade de contratação de financiamentos rurais em bancos particulares ou cooperativas.
De fato, o cometimento de uma infração, ou mesmo de um crime, não impede a terceiros particulares que venham a praticar como agente do ilícito atos da vida civil. Tal caso, entretanto, não é o do crédito rural.
Já vimos que o crédito rural tem verdadeira função de ordem público-econômica, sendo suas condições de contratação definidos periodicamente pelo CMN e seus recursos provenientes de alocações legais ou público-institucionais, com os objetivos específicos de ordem público-econômica, bem definidos na lei 4829/64, que dispõe:
“Art. 1º – O crédito rural, sistematizado nos termos desta lei, será distribuído e aplicado de acordo com a política de desenvolvimento da produção rural do país e do bem-estar do povo.
(…)
Art. 3º – São objetivos do crédito rural:
I – Estimular o crescimento ordenado dos investimentos rurais (…)
II – Favorecer o custeio oportuno e adequado da produção (…)
III – Possibilitar o fortalecimento econômico dos produtores rurais, notadamente os pequenos em médios;
IV – Incentivar a introdução de métodos racionais de produção, visando o aumento de produtividade, a melhoria do padrão de vida das populações rurais e a adequada defesa do solo.” (grifos nossos)
No texto de lei fica claro que se vislumbra, nos objetivos do Sistema Nacional de Crédito Rural, além da lógica mercantil, pura e simplesmente. O fomento da atividade primária é visto como uma questão de interesse público, dada à óbvia influência do setor desenvolvimento econômico e social, sobretudo das grandes extensões não industrializadas do país.
As instituições financeiras privadas, portanto, encontram-se legalmente autorizadas[6] a operar como participantes do SNCR, dispondo assim de acesso aos recursos e aos meios[7] inerentes aos financiamentos rurais.[8]
Dessa forma, não esquecendo que, em última instância, “as instituições financeiras são concessionárias do poder monetário exercido pelo Estado” [9], o banco privado é tão somente um agente da política econômica governamental (ou política agrícola, como prefere o art 187 da CF/88), possuindo, a despeito de sua natureza estatutária, um munus público quando atua como agente do Sistema Nacional de Crédito Rural. Para bem traduzir tal munus público, alguns autores chegam mesmo a ilustrar, aludindo à existência de um pequeno banco rural, com normas próprias, dentro de cada banco participante do SNCR.[10]
Por todo o exposto, não se pode pretender que o legislador vá permitir a concessão de um crédito subvencionado, para o financiamento de uma atividade que vá, em última instância, violar a lei ambiental.
Há de se ultrapassar a exegese meramente literal do art 14, III da lei 6938/81, entendendo-se que, no caso do Crédito Rural, mesmo as instituições financeiras privadas agem como participantes, embora remunerados, de um sistema público de subvenção creditícia planejado, ordenado, fiscalizado e mantido pelo poder público.
A aplicação do art 14,III da lei 6938/81, com a efetiva suspensão dos infratores ambientais, de toda linha de crédito ou benefício[11] pertinente ao Sistema Nacional de Crédito Rural, pode vir a ser um – senão o maior – fator de coerção para o alcance da eficácia das normas ambientais, posto que, como supra aduzido, o setor rural ainda é fundamentalmente dependente do crédito subvencionado.
*Artigo aprovado para compor a 1a Conunicação Nacional Brasileira sobre emissão de gases de efeito estufa não controlados pelo protocolo de Montreal. Coordenação: Ministério da Ciência e Tecnologia, em cumprimento das obrigações assumidas pelo Brasil no âmbito da Convenção- Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Apresentação prevista para a rodada de negociações sobre a regulamentação do Protocolo de Quito, a ser realizada em Bonn, em Julho de 2001
[1] Vale notar que o Acordo Geral de Tarifas e Comércio – GATT – não incluía em sua pauta de proibições o subvencionamento à atividade primária, sendo esta, portanto plenamente aceitável à luz do Direito Internacional. Não obstante, o Agriculture Agreement, formulado já sob os auspícios da OMC, estabeleceu bilateralmente metas e prazos para a redução do volume de recursos destinados ao subvencionamento do setor primário.
[2] Tais recursos são classificados em recursos obrigatórios, consistentes em percentual sobre o depósito compulsório dos bancos, liberado pelo Banco Central para aplicação em Crédito Rural; recursos vinculados, que são os oriundos de operações rurais, inclusive multas, juros e amortizações de operações de Crédito Rural; recursos de caderneta de poupança rural, instituto criado pelo legislador para a captação de recursos para o fomento das carteiras rurais; recursos de fundos, programas e linhas e específicas, e recursos livres das instituições financeiras. Todas as alocações, entretanto, são previstas em lei ou determinadas pelo Conselho Monetário Nacional. Para aprofundar o assunto, sugerimos a leitura do Manual de Crédito Rural do Banco Central do Brasil – MCR. 6.1.1- ou ainda de nosso “Crédito Rural: Aspectos Jurídicos de um sistema de subvenção econômica.” Belo Horizonte, FDUFMG. 1999.
[3] O legislador, neste ponto, foi bastante preciso ao adotar, quando da edição da lei 4829/64, a nomenclatura “Sistema Nacional de Crédito Rural”.
[4] Organizações não governamentais tem concluído que atividade agropastoril, que pratica essencialmente o “corte raso” bem como insiste na prática das “queimadas”, apresenta potencialmente maior potencial danoso do que as próprias madeireiras, vez que tal atividade concentra-se na extração dos espécimes floras determinadas e com espessura mínima, tendendo a “poupar” os espécimes menores.
[5] Neste sentido, recomendamos a leitura de: TRINDADE, Antônio Augusto Cançado: Direitos Humanos e Meio ambiente – paralelos dos sistemas de proteção internacional. Porto Alegre: S A Fabris, 1993.
[6] Ver art 7º§1º, c da lei 4829/65, c/c art 2º do dec 58 380/65.
[7] Brasil. Dec-lei 167/64.
[8] A opção do legislador mostrou-se sobremaneira moderna e econômica, evitando-se assim a necessidade de criação de um gigantesco banco rural, com sucursais por todo o país, e utilizando-se portanto dos bancos privados como agentes do SNCR.
[9] FRIGERI, Márcia Regina: A responsabilidade Civil dos Estabelecimentos bancários. Rio. Forense. 1997, pg 24.
[10] AGUIAR, Felipe Meira: Teoria e prática do Crédito Rural. São Paulo: Universidade-Empresa.1980.
[11] Entre tais benefícios pode-se incluir aqueles previstos na lei 9138/95 e nas res 2238 e 2279 ambas do CMN, bem como todos as formas de alongamento, prorrogação doe dívidas, descontos, refinanciamento, etc.